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Lançamento da Giz Editorial: Anardeus - No Calor da Destruição, de Walter Tierno

Oi, Leitoras e Leitores Viciados! 
A Giz Editorial apresenta o novo livro do autor Walter Tierno: Anardeus, No Calor da Destruição, um livro provocativo, que traz personagens inquietantes vivendo situações bizarras numa São Paulo mostrada sem piedade ou meios-tons.
Convite para o lançamento do livro amanhã, dia 24/08, na Livraria Martins Fontes Paulista:


O livro:


Anardeus
No Calor da Destruição
Walter Tierno - Giz Editorial
Ilustrações: Walter Tierno
178 páginas - Ano: 2013 - R$27,90
Lançamento: 24 de agosto de 2013.

Sinopse:
"Anardeus nasce feio, cresce ignorado e se torna um adulto desagradável. Sente muito frio, o tempo todo, e só desfruta o conforto do calor quando testemunha tragédias e horrores. Ele odeia tudo e todos, menos sua irmã gêmea, Isabel, sua antítese: linda, amável e cheia de calor.
Anardeus, com a sua personalidade detestável, é um anti-herói incomum e, por isso mesmo, tão interessante. O mundo não deseja Anardeus. Anardeus não deseja o mundo. Mas terão que viver juntos até o final apocalíptico e perturbador.
Anardeus. No calor da destruição tem como cenário São Paulo e seus personagens cínicos, loucos, egoístas. Um romance sem rótulos ou lugar-comum, para ler e sentir tudo - menos indiferença."

Links: Giz Editorial | Skoob

O autor:
Walter Tierno é ilustrador, jornalista e publicitário. É apaixonado por histórias em quadrinhos, animais, livros de ficção científica, fantasia e história.
Começou a trabalhar em 1990, aos 18 anos - pouco antes de se formar técnico em Artes Gráficas pelo Senai - no departamento de arte da extinta editora Maltese. Aos 21, ingressou no ramo publicitário, onde atuou durante quase vinte anos.
Walter vive em São Paulo, com a esposa, Veridiana, a filha, Catarina, os gatos Titus e Sisko e a gata Jolie.
É conhecido no crescente meio dos blogs e vlogs literários, dos quais recebeu elogios entusiasmados por seu livro de estreia, Cira e o Velho. Também mantém um canal do Youtube, onde fala sobre literatura, histórias em quadrinhos, entre outros assuntos.
Site | Youtube

Na imprensa:
O autor recebeu destaque em uma matéria publicada no Jornal da Tarde sobre o evento Fantasticon, tendo sido apontado como um diferencial em um mercado que se esforça por igualar temas e linguagens a sucessos editoriais como Harry Potter, O Senhor dos Anéis, Crespúsculo, Cidade dos Ossos, entre outros. Diferentemente, ele aposta em elementos da cultura e da História brasileiras.

Outras obras:
Walter Tierno também tem contos publicados nos livro Amor Lobo, da Giz Editorial, em que fala sobre o relacionamento de um lobisomem e uma prostituta durante a ditadura militar brasileira; e no livro Mitos Modernos, com uma história sobre um ex-peão e uma mula-sem-cabeça abusada em um rodeio.



Trecho:
"Marcelo é umvencedor e, em sua estante, quinhentos e trinta e dois livros que ensinam o caminho do sucesso explicam por quê. Leu todos, rapidamente. Leitura dinâmica, que aprendeu durante o primeiro ano de faculdade. Não fazia parte do currículo acadêmico, pagou por fora. Também fez outro, de memorização, e graças a ele consegue decorar os nomes de trinta pessoas de uma só vez. Uma habilidade muito útil no mundo corporativo e em festinhas de empresa.Marcelo definitivamente é um vencedor. Seu apartamento é bom. O prédio, embora antigo, é bem administrado, limpo e conservado. Tudo funciona a contento, desde os elevadores até as bombas de água. Marcelo admite que não fica na área mais nobre de São Paulo, mas está bem localizado. Tem tudo de que precisa por perto: bancos, mercados, padarias, cinemas, livrarias e puteiros. As janelas dos quartos e da sala ficam viradas para a Rua Augusta, tradicional passarela da decadência chique. Nos finais de semana, os festejos são mais barulhentos, mas não o suficiente para alterar a rotina ou o humor de Marcelo. Mesmo as bagunças ocasionais são compensadas pelo privilégio de morar a poucas centenas de metros da Avenida Paulista. Seu trabalho é tão estimulante e desafiador quanto ele quiser. Aprendeu isso com um de seus quinhentos e trinta e dois livros. O salário é muito bom, e o dinheiro, se bem administrado, o levará a novas conquistas. A esposa é dedicada, e o filho recém-nascido, saudável. Já faz tempo que não vê a amante, mas não importa. Ela não faz parte de seus planos de médio e longo prazo. É só um capricho prazeroso – muito prazeroso – e descartável. Se ainda a encontrar mais uma ou duas vezes, muito bem. Se não, página virada, como tantas que virou na leitura dinâmica.Uma das lâmpadas da sala pisca. Não demora muito, vai pifar. Ele confere se há uma reserva no armário da cozinha e encontra duas, atrás da garrafa de vinho. Serve-se um cálice, para estimular o sono. Bebe devagar, fingindo para ninguém que é grande admirador do ácido e tinto sabor. Na verdade, apenas o tolera, mas ninguém precisa saber disso. Vencedores sabem apreciar um bom vinho – sempre o cuidado em permanecer sóbrio. Não precisa realmente gostar. Só parecer.Imagem é tudo! Aprendeu isso com um dos seus quinhentos e tantos livros.O apartamento fica no décimo andar. Marcelo está à janela da cozinha, de onde tem uma vista privilegiada da Zona Sul da cidade, do alto da serra e da chama da refinaria de petróleo que crepita sobre ela.O cachorro late.Marcelo, rosnando para o cão: – Quieto, Thor!O bebê deu trabalho para dormir e ele não está disposto a gastar mais vinte minutos balançando-se de um lado para o outro com ele nos braços.O pug não se cala. Marcelo repete a ordem e empurra-o com o pé. Ele solta um ganido rouco e para de latir.Marcelo, para si: – Cachorro idiota.Até o nome é idiota, pensa. Só mesmo a esposa para escolher. Thor? Nome de personagem de gibi. A esposa diz que é um deus ou lenda, ele não lembra qual dos dois e não se importa. Coisas de criança não lhe interessam.Thor chora baixinho. O som que sua audição havia percebido chega aos ouvidos menos aguçados de Marcelo. Um assovio medonho, acompanhado do ronco descompassado e rasgado das turbinas. O som aumenta rapidamente. Mais do que o normal. Muito mais.O avião entra em seu campo de visão.Cresce.Não há tempo para nada. Resta lamentar. Thor corre em busca de abrigo.Mas não há abrigo seguro no apartamento.Não há abrigo seguro no prédio.Algum pensamento tenta se formar na cabeça de Marcelo. Uma memória, talvez um filme de toda sua vida diante de seus olhos?Não vê nada além do avião, que cresce e traz a perspectiva de muita dor. Marcelo tem medo de sentir dor. Ele não sabe, mas não sentirá nada. Já não sente. Não é capaz de perceber seu intestino e sua bexiga liberarem todo o conteúdo, que escorreria pelas pernas paralisadas, se houvesse tempo.O avião fica imenso.O ar deslocado quebra as janelas. O corpo é arremessado mas não vai muito longe. O rasgo, o calor, mas não há dor. Não há tempo de sentir dor.Talvez um lamento, mas nenhuma memória.Agora, nada.
É assim queimagino o fim de Marcelo. Destruído por um avião que vejo cair sobre ele e seus quinhentos livros recheados de obviedades e idiotices. Isabel está ao meu lado, sobre a laje de um sobrado, a um quarteirão de distância. A claridade da explosão ofusca as luzes da rua e atravessa o tecido leve e fino do vestido de Isabel. Seu corpo tenso, o olhar triunfante, de vingança desfrutada. Ela me olha com gratidão e orgulho, me abraça e sussurra em meu ouvido.Isabel: – Estou livre também.Ela abre meu casaco, minha calça, sente a rigidez e usa a boca para me agradecer. Eu sinto culpa. Não a culpa paralisante, que tortura. Sinto a culpa excitante, criminosa, implacável.E é assim que acontece.
Agora, vou contarminha história. Na verdade, nossa história. Minha e de Isabel. Talvez eu seja um tanto confuso e randômico e apresente fatos fora de ordem. Mas nossa memória funciona desse jeito, não é? Puxa um caso daqui, uma sacanagem dali, uma trepada de lá.Que foi? Eu trepo, sim. Mesmo que eu seja feio e ande encapotado do pescoço até a ponta dos pés e tenha este olhar que incomoda pessoas com consciência pesada, ou seja, todas. Reconheço que o frio que sinto o tempo todo atrapalha um pouco, mas é só no começo. Vai passando durante a metida. E mesmo que não fosse assim, o que preciso pôr pra fora cabe na abertura de um zíper, o resto é só acessório. Sei usá-lo muito bem, mas poucas merecem.Isabel merece. Até mais.Você já viu Isabel, eu sei. Não há como não vê-la. Ela desfila pela vida com vestidos finos e roupas reveladoras, seu sorriso derrete estômagos e sua figura causa ereções neles e lubrificações nelas. Seus cabelos são cacheados, de um amarelo avermelhado, incandescente, indecente. O nariz é suave, os lábios firmes, decididos e decisivos. Isabel sente calor o tempo todo, por mais gelado que vente.Ela gosta de pessoas, festas e flores.Eu só quero que tudo isso vá à merda. Quero acabar com essa bosta de espécie.Sou democrático. Não faço distinção, nem ofereço privilégios.Odeio todos.Igualmente.
Nascemos durante umatarde quente duma segunda-feira arrastada. Feriado. Vinte e um de abril. Minha irmã passa primeiro, leve e graciosamente, pela vagina de nossa mãe e deixa-se apanhar pelo médico. Quando ele olha para o rostinho lindo, amassado e gosmento, sente-se enlevar. Ela completa o espetáculo com um choro musical e atrevido.Eu sou expelido, três minutos depois, e a enfermeira por pouco não me deixa estatelar no chão desinfetado.Enfermeira, gracejando: – Nossa! Esse estava com pressa para sair. Deve estar ansioso para rever a irmãzinha.Ninguém ri e não só porque a piada não é engraçada − afinal, é para isso que serve o riso fingido, salvador de amizades. Não, não é pela falta de graça. A própria piadista fica séria quando me examina com mais atenção. Eu não inspiro humor. O rostinho de minha irmã, mesmo enrugado e sujo, arranca suspiros e inspira felicidade. O meu distribui depressão.Assim que invado o mundo abro olhos atentos, violadores. As enfermeiras logo decidem evitar contato. Discretamente, tiram na sorte quem me dará o primeiro banho.Enfermeiras, em roda, balançando os punhos, sussurrando: – Dois ou um...A perdedora fica tão desgostosa com a tarefa e é tão displicente que quase me afoga. Faço questão de oferecer minha primeira cagada na banheira, em suas mãos. Ela não consegue evitar o palavrão. A chefe, freira cu de ferro, está perto e ouve. Dá-lhe um esporro, e a enfermeira embosteada chora de desgosto, nojo, vergonha e raiva.
Nosso pai aparecena manhã seguinte.Sempre que precisa de uma boa justificativa para ausentar-se, gaba-se dos sacrifícios exigidos pela profissão. Publicitário. Do tipo que faz mais fama que resultado. Três meses antes, recebera um prêmio por uma campanha para batatas fritas. Uma frase genial sobre as batatas serem feitas de ouro ou qualquer idiotice parecida. Nem por isso as batatas venderam mais. E o prêmio não saiu barato. Nossa avó, dona da agência, molhou a mão de avaliadores careiros. Desperdício. A única vantagem foi catapultar o nome de nosso pai por algumas semanas e seu ego por alguns anos.Ser publicitário famoso e premiado rouba muito tempo de nosso pai.Nosso pai, explicando-se para nossa mãe: – Pintou uma conta urgente. Uma loucura! Eu te avisei que seria assim quando nos casamos.Nossa mãe, debilmente: – Não podia, pelo menos, telefonar para avisar?Nosso pai: – Desculpe, mas quando aparece esse tipo de conta, a gente se fecha na sala de criação. Não dá para fazer ligação externa de lá. Eu nem sabia que você tinha vindo pro hospital. Ninguém pode entrar na sala de criação. A gente se isola.A desculpa é boa. Celulares ainda não vibram nos bolsos, bolsas e bundas das pessoas.Nossa mãe: – Eu tive que vir sozinha, de táxi. O caminho todo me virando do avesso de tanta dor. Peguei um taxista novinho, todo assustado, coitado. Acho até que chorou, o infeliz. Quase me deixa no meio do caminho.Nosso pai: – Que merda! Esses taxistas estão cada vez piores!Nossa mãe: – Se você estivesse junto...Nosso pai: – Mas o importante é que deu tudo certo. Não fica pensando nisso. Agora, você tem é que descansar. Eu também estou um caco.Nosso pai, um sorriso cansado, falso, como só ele sabia fazer: – Não é mole, não. Eu não dormi quase nada. Cliente é isso aí, não liga pra vida pessoal dos funcionários da agência. Quer a coisa pronta, e foda-se o resto.Nosso pai, levantando ombros e sobrancelhas: – Quando a gente se casou, eu avisei que seria assim, não foi?Nossa mãe: – Mas a agência é da sua mãe...Nosso pai, sério: – E daí? Não tenho privilégio, não. Eu avisei, não avisei? Quando a gente se casou eu avisei como era trabalhar em agência e que minha mãe não dava mole, não. Ela é foda! Eu avisei.Para nosso pai, avisar que fará merda é como pré-datar uma anistia, e nossa mãe aceita, ou finge que aceita. Ela faz muitas concessões para manter o casamento a salvo.Vencedor da discussão, ele se aproxima para conferir a ninhada com mais calma. Minha irmã está aconchegada nos braços de nossa mãe e eu repouso numa manjedoura ao lado. Ela dorme, pacificamente. Eu rodopio os olhos e aprumo os ouvidos. Tia Silvia repara.Resmungo de tia Silvia que nossa mãe finge não ouvir: – Que menino esquisitinho... Presta atenção em tudo...Tia Silvia chegara antes de nosso pai e teria comparecido ainda mais cedo, se tivesse sido convocada, mas nossa mãe sente-se uma derrotada com as opiniões que a irmã mais velha despeja sem cerimônia sobre seu marido. Tia Silvia não se esforça nem um pouco em ocultar sua incredulidade e desagrado ante as explicações e histórias esfarrapadas de nosso pai, e ele não se esforça nem um pouco em ocultar que caga para suas opiniões.Nosso pai, beijando o cocuruto de minha irmã: – Que linda! Olha, olha! Parece comigo.Aproxima-se para fazer o mesmo comigo, mas, ao contemplar minha carinha mal desenhada, desiste.Tia Silvia, apontando-me: – Eu acho que quem se parece com você é este aqui.Nosso pai ignora a provocação. Está estupidamente orgulhoso e, como qualquer pai estupidamente orgulhoso, estufa o peito e oferece sorrisos às enfermeiras que entram no quarto e elogiam a beleza da filha.Nosso pai, apontando minha irmã: – Não é minha cara?A maioria das enfermeiras: – Imagina. É a cara da mãe.Não é. Nossa mãe não é tão bonita.Quase hora do almoço. Nosso pai atende à ansiedade da esposa e sai para registrar nossos nomes.Nomes pesquisados, debatidos, negociados e decididos pelos dois em longos e enfadonhos debates que dava para ouvir lá do útero de nossa mãe. Mas até vereditos tornam-se vãos ante o poder amnésico do álcool, e nosso pai deve ter sentado em frente ao escrivão com o rabo cheio dele.Retorna ao hospital muitas horas depois. Minha irmã dorme. Eu, não. Antes de se entregar ao sono, nossa mãe pergunta se ele se lembrara de registrar tal nome para a menina e tal para o menino.De que outra forma ele poderia responder? Nosso pai, com a maior cara de pau que já vestira em toda sua vida: – Claro que sim!
As certidões quenosso pai traz do cartório atestam mais que nossos nomes. São provas incontestáveis de sua vocação para a lambança. Chega com elas três dias depois da alta de nossa mãe. Estivera em outra maratona de trabalho na agência e saíra de lá direto para o cartório e do cartório para nossa casa. Pelo menos é o que alega.Arma seu sorriso mais carismático e entrega as certidões. Nossa mãe as recebe com mãos hesitantes e olhar desconfiado.Nossa mãe, mal disfarçando a raiva que faz seu lábio inferior tremer: – Que é isso? Esses não foram os nomes que escolhemos!Nosso pai, fazendo-se de besta: – Não? É, não são. Não são? Não... Bem... Eu tinha anotado em algum lugar, justamente para não esquecer, mas não sei onde foi parar. E você sabe como fica minha memória quando trabalho muito. Pois é... Eu esqueci.Nossa mãe, tremendo: – E como... Como... Por que você...Nosso pai, aplicando uma mentira que não cola nem com reza: – E eu já estava na frente do escrivão. Tinha que ir até o fim.Nossa mãe: – E de onde vieram esses nomes?Nosso pai, como se estivesse apresentando uma campanha publicitária genial a um cliente muito importante: – Você me conhece. Quando preciso de uma boa ideia... É uma boa história. Escute. Um rapaz da manutenção trocava uma lâmpada. Estava trepado em cima de uma escada dobrável. No chão, a caixa de ferramentas escancarada. Tinha uma corrente dentro. “Para que serve essa corrente na hora de trocar lâmpadas?”, pensei. Perto, um velho. Cabelos brancos e camisa florida. Lia um livro. Não consegui distinguir o nome do livro, mas lembrei de um que li faz pouco tempo e tinha gostado, mas não lembrava por quê. Não era um romance. Era um livro de memórias. Memórias da autora, que é esposa de um escritor famoso. Aí, minha cabeça começou a encaixar as coisas. E a porra da corrente servia para quê? Prender uma memória, talvez? De quê? Desse trabalho idiota? Afinal, não é um publicitário criativo e importante como eu. Escravidão. Liberdade. Quem libertou os escravos? Lembrei o nome do livro: Anarquistas, graças a Deus. Anarquistas, Deus, princesa que libertou os escravos. E... PÁ! Os nomes piscaram na frente dos meus olhos, sabe como é? Desenhadinhos, com cor e tipologia, direitinho.Tia Silvia está presente e testemunha tudo. Oferece um olhar agudo e significativo para nossa mãe.Olhar de nossa tia: “Eu não te falo sempre que esse teu marido é um bosta?”Nossa mãe inspira profundamente. Fita nosso pai por exatos três segundos e libera o apocalipse.Grita, discursa, esperneia, arranca cabelos, bufa e grita mais um pouco. Não se deixa interromper pelas trocas de fraldas, muito menos pelas mamadas. Nosso pai desconhece a esposa em fúria. Assusta-se e com razão. Cada porção de tudo que ela havia engolido desde quando se conheceram é liberada:Nossa mãe, frustrada: – O que mata é que você pensa que sou uma idiota. Acredita mesmo que eu não sei das suas escapadas com aquela vaquinha da contabilidade da agência?Nossa mãe, magoada: – Onde já se viu abandonar a mulher grávida? Não estava lá na hora que eu mais precisei!Nossa mãe, puta da vida: – Trabalho é o cacete! Safado! Você não estava trabalhando. Estava era enchendo a cara em alguma zona do Arouche, que eu sei!Nossa mãe, vingativa: – Jogou nosso dinheiro fora, num negócio que qualquer idiota via que não daria em nada! Lembra disso? Isso mesmo, aquela loja que você entrou como sócio do imprestável do Jorge. Amigo de merda! Sabia que ele me cantou? E não foi uma vez só, não!Nossa mãe, muito puta da vida: – Como é que você me saiu com esses nomes? Isabel ainda vá lá! Não era o que a gente tinha combinado, mas, pelo menos, é nome de gente. Mas onde você estava com essa bosta dessa cabeça de merda quando botou um nome fodido desses no menino? Anardeus!?Nosso pai se defende. Reconta o processo de criação dos nomes, o que só enfurece mais nossa mãe e diverte tia Silvia. Saca justificativas e defesas para as acusações derramadas sobre ele e repete incontáveis vezes que a esposa sabia no que estava se metendo quando o aceitou como marido. Mas a pré-anistia é revogada. Tenta contra-atacar.Nosso pai, vítima: – Como você pode me dizer essas coisas?Nosso pai, transparente: – Eu nunca te escondi nada. Nunca menti.Nosso pai, amoroso: – Eu nunca te traí, você sabe disso. Você é a mulher da minha vida.Nosso pai, conselheiro: – Amanhã, você vai se arrepender dessas coisas que está dizendo.Nosso pai, patético: – Você sabia como era e, mesmo assim, quis botar filho no mundo! Eu não nasci pra essa vida de eunuco!Nossa mãe: – Então, por que você não some de vez?Dessa frase a lógica estapafúrdia de nosso pai cava a solução que considera a mais honrosa.Fim de semana seguinte. Uma tarde de domingo. As crianças da vizinhança pintam as ruas e calçadas em homenagem à seleção que representará o país na Copa do Mundo de futebol. Ao passar pelas crianças, nosso pai chuta uma lata de tinta amarela e estraga a brincadeira. Nunca mais voltou.
Isabel passa pelaporta delicadamente, passos apressados, uma carranca de preocupação. Esfrega uma mão na outra. É véspera de nosso vigésimo quinto aniversário. Não teremos festa. Ela cancelou. Por mim, até melhor. Um alívio não ver aquele monte de caras que não me importo em conhecer, música e alegria forçadas.Isabel ama festas de aniversário. Para cancelar, é porque alguma coisa está muito errada.Isabel, abrindo a blusa para aliviar seu calor: – E a Mariana?Eu, desviando os olhos do sutiã rendado: – Na casa da mãe dela.Isabel: – A essa hora da noite?Não respondo, nem ela pressiona. Vai até a cozinha e serve-se um copo de água. Bebe apressadamente e estala a língua. Volta para a sala, senta-se no sofá e fita a TV desligada, como se algo muito interessante estivesse acontecendo na tela. Mas não é a tela que seus olhos miram. Estão voltados para dentro da própria cabeça, para algum turbilhão.Ela percebe que a observo. Que a decifro. Ergue a barreira. É a única que sabe como.Isabel: – Estava dormindo?Eu: – Não.Isabel: – Assistindo televisão?Eu, apontando o aparelho desligado: – Não.Isabel: – E a Mariana?Eu: – Na casa da mãe.Isabel: – A essa hora?Eu, ansioso, ríspido: – Você já perguntou isso. Que foi?Isabel: − Preciso de motivo para visitar meu irmão?Eu: – Você sabe que horas são?Isabel: – Com certeza, não é hora de esposa estar na casa da mãe.Eu, ignorando: – Que aconteceu?Isabel, sem conseguir me encarar: – Eu tenho que te contar uma coisa. Uma coisa que não posso guardar só pra mim.Faz uma pausa. Espera que eu pergunte algo. Decepciona-se.Isabel: – Encontrei, sabe? Eu encontrei.Eu: – Encontrou o quê?Isabel: – Encontrei meu pai. Nosso pai!Sento-me a seu lado.Eu, abobalhado: – Como?Isabel: – Não foi difícil. Não foi. Foi só querer. Querer muito. Quando a gente quer... você sabe.Sei. Conheço os mantras que ela leu nos livros do namorado. Pensamento positivo, objetivo, foco, essas merdas todas."

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