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O Pomar das Almas Perdidas, de Nadifa Mohamed e Tordesilhas (Editora Alaúde)

O Pomar das Almas Perdidas (The Orchard of Lost Souls)
Nadifa Mohamed - Tordesilhas / Editora Alaúde
296 páginas - 2016 - R$39,90
Tradução: Otacílio Nunes
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Sinopse:
"Hargeisa, segunda maior cidade da Somália, 1987. A ditadura militar que está no poder faz demonstrações de força, mas o vento que sopra do deserto traz os rumores de uma revolução, e em breve, pelos olhos de três mulheres, vamos assistir ao mergulho do país em uma sangrenta guerra civil.
Aos 9 anos, atraída pela promessa de ganhar seu primeiro par de sapatos, a menina Deqo deixa o campo de refugiados onde nascera. Em circunstâncias dramáticas, conhece Kawsar, uma viúva que logo em seguida é presa e espancada por Filsan, uma jovem soldado que deixara a capital para reprimir a rebelião que crescia no norte. 
Intimista, singelo e poético, O Pomar das Almas Perdidas nos lembra de que a vida sempre continua, apesar do caos e do sofrimento."

Resenha:

Nadifa Mohamed nasceu na Somália e estudou na Inglaterra. Seu primeiro livro é Black Mamba Boy (2009, inédito no Brasil) e seu segundo romance é The Orchard of Lost Souls (2013), lançado em fevereiro de 2015 pelo selo Tordesilhas, da Editora Alaúde, como O Pomar das Almas Perdidas. É seu romance de estreia no Brasil. O exemplar nacional apresenta orelhas, informações, páginas amareladas (papel pólen soft), excelente revisão e diagramação e fontes e margens simples e de bom tamanho. O significado do título é tão eficiente quanto a escrita da autora, é belo e triste.
Após receber o prêmio Betty Trask Prize 2010 pela primeira publicação, Nadifa foi eleita em 2013 pela revista literária Granta como uma das melhores jovens escritoras britânicas (ela mora em Londres), ao representar com talento a literatura africana, que vem ganhando prestígio e destaque pelo mundo. O público-alvo é formado por adultos e jovens e será fácil para o(a) leitor(a) se envolver.
Além de ser um livro escrito por uma africana, observemos que é uma mulher e é sobre mulheres. A temática é forte: A guerra civil que assola a Somália desde os anos 1980. A novidade desta obra é que mesmo que se saiba sobre os conflitos, quase sempre através de reportagens ou livros, e em sua maioria de vezes de forma didática, pouco se sabe sobre as pessoas. Pouco se sabe sobre o verdadeiro sofrimento humano. Pouco se sabe sobre as vidas, cultura e tradições dessas pessoas. Portanto, o foco do livro é o povo somali e suas tradições, sua forma de enfrentar a dor da guerra. Na verdade, as mulheres é que importam e ganham voz através do texto de Nadifa Mohamed.


Ela dá vida e brilho a personagens típicas da Somália, mas sem estereotipá-las. Mostra mulheres comuns, simples e de diferentes faixas etárias e classes sociais. Apresenta poesia e brilho ao criar as protagonistas femininas de O Pomar das Almas Perdidas, equilibrando realismo duro ao mostrar beleza da cultura e idioma de uma população sofrida, porém esperançosa e nostálgica. Sua escrita é magnífica, lírica, e franca; suas descrições são peculiares, fortemente elaboradas e agradáveis; a construção das personagens é gloriosa e crível. Dizer que me senti dentro do livro é pouco, de tão intensa e mágica que a escrita da autora é.
O fato de que todas as protagonistas e praticamente todas as personagens secundárias são femininas me interessou muito. Mais que saber sobre guerra ou política, mergulhei na intimidade de meninas e mulheres muito diversificadas enfrentando as sequelas do caos. Temos refugiadas, soldados, mães, filhas, esposas, prostitutas e mais.
É um dos melhores livros de minha vida, inesquecível e reflexivo, para se guardar eternamente no coração, para ser relido em várias fases da vida. Logicamente traz sofrimento, pois o cenário é devastador, a forma como a guerra agride a população e a modifica entristece. Acompanhamos consequências sociais, políticas e culturais. E dentro deste cenário não devemos nos esquecer de que os pobres sofrem mais. No meio do perigo há ainda outra observação importante: Por pior que seja uma guerra para os homens, é sempre mais terrível para as mulheres e a autora descortina esse fato estarrecedor. Sem abusar da violência e sofrimento desnecessário, prefere o caminho da esperança e doçura. Há brutalidade e morte, todavia o âmago da obra é tentar encontrar encanto e sonhos em meio a tudo isso. É uma obra rica e esclarecedora, mostrando vidas e fatos desconhecidos e curiosos.


O cenário é a segunda maior cidade da Somália, Hargeisa, menor apenas que a capital, Mogadíscio. A época da trama é 1987, às vésperas do conflito que devorou o país, quando surgiu uma oposição armada no norte e culminou no caos total em 1990. A Somália, posicionada na ponta do "cifre africano", se tornou independente do Reino Unido e Itália para ser unificada em 1960 como República da Somália. O país possui inúmeros clãs e tribos, com política muito delicada e descentralizada. Desde 1974, após o rompimento das relações com a União Soviética e conflitos com a vizinha Etiópia, a Somália enfrentara conturbações graves.
O pano de fundo do enredo é desenvolvido a partir dessa tensão pré-guerra civil, quando tudo se voltou ao perigo intenso e cada vez mais próximo da explosão de um país prestes a mergulhar em batalhas e miséria. Após a leitura é impossível não se interessar pelo o que aconteceu depois ao país e a seus mais de 10 milhões de habitantes.
Dentre incontáveis reflexões, pensei na questão dos refugiados, espalhados pelo globo por diversos motivos. A Somália é o país africano com o maior número de refugiados. Pensei também nas crianças sem origem, sem nação, sobrenomes ou família. E em como a vida dura e a violência são capazes de influenciar ou mudar pessoas - para o bem ou para o mal. Cada leitor terá pensamentos diferentes, mas será impossível fugir disso. A melhor maneira de refletir, imaginar e questionar é através de uma simples mas bela história, e a autora proporciona isso em O Pomar das Almas Perdidas, livro lindíssimo. A trama é sobre encontros e desencontros, solidão e desespero, mas também sobre ternura e bondade.


A narrativa é em terceira pessoa, dividida entre os pontos de vista de uma menina e duas mulheres: Deqo, de apenas 9 anos de idade; Kawsar, a mais velha, quase idosa; e Filsan, uma mulher jovem caminhando para a maturidade. O livro apresenta uma excelente estrutura, que demonstra planejamento para a produção do enredo. São cinco divisões no total em ordem cronológica, com exceção de flashbacks rápidos e esclarecedores que se interligam ao presente e auxiliam a construção das personagens e fundo político.
Na Parte Um (49 páginas) funciona como introdução, pois a autora apresenta o cenário, o ambiente, a época e as personagens. Deqo, Kawsar e Filsan se encontram pela primeira vez na festa de aniversário da revolução que instaurara a ditadura militar. Toda a população é obrigada a comparecer e a participar. Deqo sofre uma agressiva injustiça, Kawsar interfere a favor da menina e é presa pela soldado Filsan. No princípio do livro o(a) leitor(a) se depara com acontecimentos essenciais para que a história comece.
A Parte Dois realça cada uma das três protagonistas, começando por Deqo (57 páginas). Ela é uma refugiada sem pátria, família e sobrenomes e logo aprende a dureza de se tornar menina de rua em um país pobre, instável e com muito perigo, prestes a entrar em guerra total. Ela é esperta e tenta sobreviver sozinha, até ser recebida como empregada doméstica não remunerada em um prostíbulo pobre, onde ela conhece mulheres diferentes. Mesmo perante todas as privações e o sofrimento da solidão, Deqo não abandona seus sonhos.
Em seguida é a vez de acompanharmos Kawsar (72 páginas), que está impossibilitada de se movimentar e prosseguir com sua vida triste porém tranquila em seu velho bangalô. Ela é viúva e guarda segredos dolorosos sobre a morte da única filha. É muito querida na vizinhança, possuindo várias amigas, recebendo logo a assistência de uma empregada doméstica jovem, parente de uma vizinha. Ambas trocarão ódio e amor, e logo perceberão o perigo iminente que todos enfrentarão. Kawsar sofre de depressão e se sente muito sozinha, lutando para não deixar a amargura dominar seu coração.
A terceira protagonista é Filsan (54 páginas), uma jovem soldado ambiciosa em busca de autoafirmação e que vive tentando provar ao pai e a todos os homens militares ao seu redor de que ela é tão boa quanto eles. Ela descobre duramente que viver em um mundo masculino e violento é desesperador, especialmente quando ela se sente cada vez mais só, além de notar que a guerra a caminho dificultará ainda mais sua vida. Portanto, fica dividida entre uma carreira de sucesso com sangue nas mãos ou desertar, se tornar foragida e buscar por redenção.
Por último há a Parte Três (52 páginas) onde ocorre o clímax e desfecho das vidas de Deqo, Kawsar, Filsan e personagens secundárias.


Notável que durante todo o percurso da trama percebemos ligações entre as protagonistas com seus arcos próprios e entre o núcleo secundário e até mesmo entre figurantes anônimos (ou quase). Por exemplo, em certo ponto o(a) leitor(a) presencia determinada ocorrência e mais a frente descobre quem era tal pessoa em cena. Isso ocorre várias vezes, deixando a obra ainda mais interessante e intrinsecamente bela. O desenvolvimento é muito rico, como raramente encontramos na ficção.
A revolução se amplia, o conflito armado e a brutalidade se fixam no cotidiano, a população sofre e morre, mas nem todos permanecem omissos e submissos. Conhecemos os nômades, os soldados, os órfãos, os mendigos, as donas de casa, os comerciantes, as prostitutas. Conhecemos pessoas que perderam em meio aos escombros e cadáveres seus entes queridos, seu lar, sua profissão e até mesmo sua personalidade.
Neste cenário, as mulheres se destacam, em todas as partes, todas as cenas. Representadas por várias, incluindo as protagonistas Deqo, Filsan e Kawsar, que se envolvem em uma obra literária memorável e formidável. Envolvem também o(a) leitor(a), junto a elas e à Somália; que persiste imersa em instabilidade política e considerada internacionalmente um Estado muito frágil. Vidas são afetadas dentro desse quadro, mas elas resistem, sobrevivem e sonham.


A autora:
Nadifa Mohamed nasceu em Hargeisa, Somália, em 1981, e foi educada no Reino Unido. Estudou história e política no St. Hilda’s College, Oxford. Atualmente, ela mora em Londres. Seu primeiro livro, Black Mamba Boy, foi publicado em 2009 (inédito no Brasil).
Nadifa foi eleita uma das melhores jovens escritoras britânicas pela revista Granta.
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