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[Resenha] Dias de Abandono, de Elena Ferrante e Biblioteca Azul (Globo Livros)

Dias de Abandono (I Giorni Dell'abbandono)
Elena Ferrante - Biblioteca Azul / Globo Livros
Tradução: Francesca Cricelli
184 páginas - R$ 39,90 (impresso) e R$ 27,90 (ebook)
Comprar: Amazon | Cultura | Saraiva

Sinopse:
"No livro, a escritora escondida pelo misterioso pseudônimo utiliza suas palavras cortantes e sua clareza brutal para percorrer o turbilhão emocional vivido por Olga após um casamento fracassado. Traída e se sentindo abandonada pelo marido, a personagem enfrenta conflitos internos em meio à nuvem cinzenta da desolação e da nova e inquietante realidade que se apresenta.
Moradores de um apartamento em Turim, para onde Olga se mudou por conta da carreira profissional do marido, com dois filhos e um cachorro, Mario e Olga viveram ma relação de 15 anos com os altos e baixos de um casamento normal. Sem abalos que evidenciassem um término repentino, Olga ouve o discurso de seu marido anunciando que ele a deixaria naquele momento. As páginas seguintes vão desnudando cenas críticas do passado do casal, repassadas até a exaustão pela protagonista e misturadas à urgência do seu cotidiano completamente destruído.
Em Dias de Abandono, Ferrante escancara a dor da rejeição moldada pelos sentimentos e particularidades de uma mulher. Em um corajoso e às vezes violento mergulho existencial, Olga vai aos poucos substituindo um atormentado desejo de redenção por algo ainda desconhecido.
Antes presa a um personagem construído pela sociedade e por suas próprias expectativas, ela se dá conta de que amou mais justamente quando se sentiu “enganada, humilhada e abandonada”. A raiva pela justificativa mentirosa do marido ao tê-la deixado, que antes parecia acender a urgência do amor, agora o esvazia. No espaço entre esses dois pólos distintos, sem amor, dentro do nada, resta a ela saber se novos sentidos podem tomar formas na urgência da vida."

Resenha:
A tetralogia Napolitana (Ciclo L'amica Geniale / Neapolitan Novels) é fenômeno literário mundial, amplamente elogiada pela crítica e público e voltada aos adultos e está sendo adaptada em série de quatro temporadas numa parceria entre HBO e a rede pública de televisão italiana Rai. (Você confere as resenhas dos volumes um e dois aqui no blog). A autora dos livros é a misteriosa Elena Ferrante e são poucas as informações passadas pela editora original: é uma mulher italiana que escolheu permanecer no anonimato. De qualquer forma, ela já vendeu mais de sessenta e cinco milhões de exemplares por vinte países.
Ela escreve absurdamente bem sobre o cotidiano e explora ao máximo a intimidade e o lado psicológico das personagens. Seu o poder de prosa é raro, intenso, sentimental e, muitas vezes, brutal. Parece que ter a identidade em sigilo a liberta, como se destravasse a escrita em forma muito crua, vibrante, direta e ousada, mesmo se tratando de temas comuns. É como se ela se livrasse de algum tipo de censura que a maioria das pessoas costuma ter ao fazer arte, principalmente literatura. Ela passa a impressão de poder ser bem honesta acerca do comportamento humano, como se não tivesse que dar satisfação ou justificar as ações e sentimentos de suas personagens. Ela não precisa se preocupar em expor nada nem alguém, muito menos em limitar suas ideias e isso faz de seu trabalho um desabafo também para quem o lê.


Em Dias de Abandono (I Giorni Dell'abbandono / The Days of Abandonment), publicado originalmente na Itália em 2002 e no Brasil em 2016, pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros, Ferrante apresenta uma história bem mais curta que a da série Napolitana, mas igualmente poderosa e excepcional, mesmo que em menor escala. É um livro único, sem nenhuma ligação com a série Napolitana e de menos de duzentas páginas; ideal para quem ainda não conhece seu trabalho, pois assim pode começar por uma trama breve mas pungente e que possui todas as características marcantes da autora.
Assim como seus outros livros, este gira em torno da figura da mulher, seu papel no mundo machista, focando em várias questões como sexualidade, maternidade e identidade. É uma obra feminista com uma protagonista complexa, cheia de inseguranças, frustrações e coragem.
É uma crítica sobre como a sociedade exige que uma mulher se comporte, especialmente as que são mães. O pai pode ir embora, mas a mãe não. Um bom pai é aquele que paga a pensão e fica com os filhos alguns dias no mês, tendo liberdade de trabalhar, viajar e manter vida sexual e sentimental. A mãe não, ela deve ser mãe integralmente. Um marido trai a esposa e ela deve ter raiva da amante e de si mesma, não do marido, pois se ele a trocou por outra, a culpa é somente de si mesma pelo fracasso do casamento. Ferrante discorda de tudo isso e expõe, rompe e esmaga todo esse machismo em Dias de Abandono.


A protagonista é Olga, uma mulher de trinta e oito anos de idade. Após quinze anos casada com Mario, dois filhos (Ilaria e Gianni) e um cachorro (Otto), o marido simplesmente diz que quer se divorciar e vai embora. Sem nunca ter demonstrado sinais claros de insatisfação ou infelicidade com o casamento ou a vida que levavam (ou pelo menos assim ela pensa), Olga não compreende o problema. Ela deixou de trabalhar e se privou de muita coisa em prol do casamento, da maternidade e da carreira do marido, como por exemplo, mudanças constantes de cidades e até países, de acordo com a necessidade do emprego de Mario. Olga não recebe nenhuma justificativa dele e inicia uma odisseia psicológica muito particular e íntima para compreender, aceitar e superar o abandono.
Pois é assim que ela se sente, traída, enganada, desperdiçada, abandonada. Inicialmente ela enfrenta descrença, para em seguida adentrar numa solidão que parece infinita.
O livro, narrado em primeira pessoa pela própria Olga, é exatamente como ela se sente durante o período de abandono. Do choque da descoberta, passando pela frustração, negação, raiva, arrependimento, tristeza, depressão e loucura, até chegar a aceitação e, quem sabe, a superação. Olga mostra também como ela se sente em relação às atitudes dos amigos e conhecidos. São muitas reflexões sobre o marido e o casamento, até chegar a pensar sobre si mesma. É uma redescoberta forçada e bastante turbulenta. Mas são os questionamentos sobre a maternidade que talvez mais se destaquem, pois a raiva e desprezo pelo marido são tão fulminantes que Olga olha para os filhos e vê muito de Mario, afinal, são tão seus quanto dele. Ela deixou de ser esposa, mas os filhos sempre vão ligá-la ao ex-marido, por pior que ele pareça a ela. Outro item em destaque é como os afazeres domésticos a sufocam. Num certo momento, ela é incapaz de manter a casa, os filhos e o cachorro em ordem, porque mesmo em depressão, frustrada ou enfurecida, ela precisa continuar a cuidar de tudo sozinha. O marido nunca foi muito útil em relação a isso, mas agora que ele a abandonou, parece muito mais difícil conseguir organizar tudo, pois ela se esquece e perde as coisas com facilidade, não consegue manter foco em nada, apenas em sua dor. E todos certamente apenas enxergam o egoísmo dela sofrer a acabar sendo insuficiente para os filhos.


Este romance contemporâneo se passa em Turim, mas Olga se refere a infância algumas vezes citando Nápoles. Sua visão sobre o feminino já estava se formando na infância, por isso ela relembra o comportamento das mulheres da época, destacando a "pobre coitada", uma vizinha que havia sido abandonada pelo marido enquanto todos assistiam seu sofrimento e definhamento. Como um fantasma a imagem dessa mulher a assombra: uma possibilidade de terminar louca como a "pobre coitada" de Nápoles parece o pior pesadelo para Olga. Ela também é acompanhada por ela mesma aos oito anos de idade, mesma faixa etária da filha, de sete anos, que é uma personagem importante. Olga tem medo de se perder e não saber mais quem é. Ela começa a não saber os motivos de fazer o que faz, sabe apenas que é necessário. Um dia após o outro.
A obra é cheia de simbolismos, não apenas em relação ao passado e a redescoberta da própria identidade, mas sobre cada situação, objeto ou detalhe do cotidiano... tudo parece muito diferente agora em meio ao abandono. O destaque é o relacionamento de Olga com o cachorro Otto, que foi dado pelo marido aos filhos. Uma relação acidental, mas que se transforma em um apego grande durante o abandono. Olga se torna fiel ao companheiro e, após um trágico acontecimento, procura por respostas e encontra uma para a qual não estava preparada, mas parece ajudá-la na aceitação da nova situação.


Um livro maduro, comovente, rico e doloroso sobre perda e abandono. Não é apenas sobre perder o casamento e sim sobre abdicar a própria identidade e não perceber. É descobrir que se vivia exclusivamente para outras pessoas e não para si mesma. É necessário enfrentar todas as dores, medos e frustrações e equilibrar personalidade, autoconfiança, maternidade e sexualidade para se redescobrir. É sobre reassumir a si mesma como mulher, mãe e pessoa; sobre uma nova vitalidade para o exercício da maternidade; sobre renascimento.
Antes de publicar seu primeiro livro, em 1991, Ferrante escreveu uma carta aos editores: "acredito que os livros, uma vez que tenham sido escritos, não tenham qualquer necessidade de seus autores. Se eles têm algo a dizer, encontrarão cedo ou tarde seus leitores". Dias de Abandono é assim, um mergulho no íntimo de uma mulher desesperada que precisa reencontrar sua autoestima e se adaptar a uma nova situação; um mergulho melancólico dentro de si, pois todo mundo, ao menos uma vez, já se sentiu só. Dias de Abandono incomoda, instiga e comove. É uma leitura arrebatadora, especialmente para as mulheres. Quer ler o início do livro e ver se gosta? Leia um trecho na Amazon clicando aqui.
A edição da Biblioteca Azul possui ótimas revisão e diagramação, orelhas e páginas amareladas e tradução de Francesca Cricelli.


O romance foi adaptado para o cinema na Itália em 2005, com direção de Roberto Faenza e Marguerita Buy como Olga. Confira o trailer abaixo:



A autora:
Elena Ferrante se recusa a divulgar fotografias e a falar de sua vida pessoal. Acredita-se que tenha nascido na região de Nápoles e que seja mãe. A autora publicou diversos romances, entre eles Dias de Abandono.
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