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[Resenha] Não me Abandone Jamais, de Kazuo Ishiguro e Companhia das Letras

Não me Abandone Jamais (Never Let Me Go)
Kazuo Ishiguro - Companhia das Letras / Grupo Companhia das Letras
Tradução: Beth Vieira
344 páginas - R$ 59,90 (impresso) e R$ 39,90 (ebook) - trecho
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Sinopse:
"Kathy H. tem 31 anos e está prestes a encerrar sua carreira de "cuidadora". Enquanto isso, ela relembra o tempo que passou em Hailsham, um internato inglês que dá grande ênfase às atividades artísticas e conta, entre várias outras amenidades, com bosques, um lago povoado de marrecos, uma horta e gramados impecavelmente aparados. No entanto esse internato idílico esconde uma terrível verdade: todos os "alunos" de Hailsham são clones, produzidos com a única finalidade de servir de peças de reposição.
Assim que atingirem a idade adulta, e depois de cumprido um período como cuidadores, todos terão o mesmo destino - doar seus órgãos até "concluir". Embora à primeira vista pareça pertencer ao terreno da ficção científica, o livro de Ishiguro lança mão desses "doadores", em tudo e por tudo idênticos a nós, para falar da existência. Pela voz ingênua e contida de Kathy, somos conduzidos até o terreno pantanoso da solidão e da desilusão onde, vez por outra, nos sentimos prestes a atolar."

Resenha:

Publicado originalmente em 2005, Não me Abandone Jamais (Never Let Me Go) ganha a 2ª edição pela Companhia das Letras, após Kazuo Ishiguro, nascido no Japão e criado na Inglaterra, ser o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2017. Todos os livros do autor ganharam novas e belas edições e capas seguindo o projeto gráfico iniciado em O Gigante Enterrado, transformando-os em uma bela coleção, que também inclui Os Vestígios do Dia (ganhador do Book Prize), Noturnos e Quando Éramos Órfãos.
Não me Abandone Jamais contém elementos superficiais de ficção científica e de distopia e se passa em uma realidade paralela, mas esta não é uma trama guiada por detalhes tecnológicos e científicos, nem mesmo pelos impactos sociais e culturais. É, acima de tudo, um drama contemporâneo de grande peso e complexidade psicológica. Com certeza a beleza deste livro não está no enredo em si, mas na sua execução. Não existe um grande mistério nem uma vilania central a ser derrotada. Apesar disso, o livro consegue ser muito profundo e sentimental e a história é bastante melancólica, simultaneamente doce e cruel. É sobre humanidade, sobre o que faz de uma pessoa um ser humano. O corpo, a consciência, a alma? É a capacidade de ter sentimentos?


O cenário é a Inglaterra e a época é o final da década de 1990 e clones humanos são gerados para doarem órgãos: os doadores, criados de formas variadas. Na história, conhecemos o internato inglês Hailsham, que funciona como moradia e escola para clones durante a infância e adolescência que, após ingressarem na vida adulta, farão um curso com treinamento para se tornarem cuidadores e, em seguida, doadores.
Eles não têm família ou pais e, no caso dos criados em Hailsham, nunca houve a intenção de esconder deles a finalidade de suas existências, mas também o assunto nunca foi amplamente debatido ou questionado pelos guardiões (funcionários e professores em Hailsham). Para os "alunos" é natural se tornar um cuidador e depois doador. Essa é a educação que recebem a vida inteira e não devem pensar em outras possibilidades de vida como, por exemplo, profissões ou relacionamentos românticos. São estéreis e o amor não é estimulado, apenas o sexo como finalidade fisiológica.
Portanto, a saúde deles é importante, mas apenas isso. Eles são criados de modo saudável, com boa alimentação, exames médicos e clínicos, exercícios, ar livre. A educação é voltada toda e exclusivamente para a aceitação completa das doações. Eles são condicionados desde o início da vida a aceitação do destino "especial".
A história é narrada pela protagonista Kathy H., criada em Hailsham e atualmente uma cuidadora que se prepara para se tornar doadora. Ela relembra seus 31 anos de vida e, embora tente seguir uma linha cronológica, da infância para a adolescência até chegar a sua fase adulta, seu relato íntimo e particular vagueia bastante de uma lembrança a outra. De Hailsham ao Casario, tece momentos e acontecimentos muito subjetivos, visto que seu ponto de vista e versão da história são os únicos do livro. Além disso, algumas memórias parecem um pouco confusas, modificadas pelo passar do tempo ou parcialmente censuradas pela ingenuidade de Kathy.


Em Hailsham todos eram estimulados a fazer arte e a debater literatura. Então desenhos, pinturas, esculturas, artesanato, leitura e produção de textos e poemas faziam parte da rotina de estudos, mais que disciplinas comuns. Percebe-se que existe o interesse de alguém em mostrar que clones apreciam e produzem arte e literatura, e talvez essa tenha sido minha maior curiosidade. Fora essa educação especial para as artes, que me pareceu ser exclusividade de Hailsham, como um estudo, aprendiam somente o básico para serem cuidadores e doadores.
A tragédia e terror da trama é testemunhar o desperdício de vidas humanas, de pessoas que nem sequer percebem o que lhes está sendo roubado. Elas não estão cientes do valor de suas vidas; são pessoas que não sabem que deveriam ter direitos e liberdade; são geradas e educadas para aceitarem o fato de pertencerem à fabricação de clones de seres humanos; para servirem como doadores de peças de reposição. Suas vidas em si, seus sentimentos e opiniões não importam para ninguém. São vidas controladas e, em vários momentos, ignoradas. Tudo o que as envolve parece ser perfeitamente comum: relacionamentos, ciúmes, amizade, egoísmo, carinho, etc... se não fosse o pesadelo de serem apenas pedaços de carne para uso de outras pessoas, seriam pessoas normais. É angustiante acompanhar o cotidiano de Kathy e dos demais e saber qual será o destino deles. É horrível seguir as reflexões de Kathy ao contar sobre sua vida e saber que tudo é sem importância, porque sua vida não é considerada propriamente uma vida pela sociedade.


Por isso não é o tipo de leitura que recomendo para qualquer pessoa, nem para qualquer momento, pois é bastante introspectivo e particular. Eu o li no final de dezembro, épocas de festas, e foi uma experiência reflexiva sobre o valor de cada indivíduo. Foi uma experiência especial.
A questão ética me perseguiu por toda a leitura e também após seu término, embora o assunto não seja abertamente explorado pelo autor. E acho que essa é sua característica mais louvável: Kazuo Ishiguro provoca, perturba e comove sem necessariamente tocar no assunto. Não há a necessidade de ser explícito e o fato da questão central ser um pouco tabu causa maior ligação com o leitor.
É muito complicado explicar a sensação e a reflexão que esse livro me causou, visto que a o conteúdo é "apenas" o decorrer da vida da protagonista Kathy e dois dos seus melhores amigos, Thommy e Ruth. Não existem grandiosos acontecimentos ou surpresas, apenas a rotina e vida das personagens, mas é intenso. Justamente por não ter nada terrível acontecendo é que me senti inquieta. Porque não precisa acontecer nada chocante com Kathy ou Thommy ou Ruth para o leitor sentir o peso da leitura. A preocupação com as vidas desperdiçadas dói e comove muito. Estar ciente do destino deles faz da leitura sensacional, ainda mais com a sensibilidade do autor, a naturalidade confessional da narradora e o vínculo que criei com as três personagens principais.


O exemplar é lindo; possui capa e bordas em tom prateado, páginas amareladas, boa revisão, orelhas e fonte e diagramação confortáveis. A tradução é de Beth Vieira. O livro foi uma cortesia do Grupo Companhia das Letras.
Em 2010 foi lançada sua adaptação cinematográfica com Keira Knightley, Andrew Garfield e Carey Mulligan nos papéis principais. O filme está disponível na Netflix. Trailer:

O autor:
Kazuo Ishiguro nasceu em Nagasaki, no Japão, em 1954, e mudou-se para a Inglaterra aos cinco anos. Ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 2017. É autor de sete livros, entre eles Os Vestígios do Dia, vencedor do Booker Prize, e Não me Abandone Jamais, ambos com aclamadas adaptações para o cinema.
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