Os Tais Caquinhos
Entrevista com a autora:
Natércia Pontes - Companhia das Letras
144 páginas - R$ 64,90 (impresso) ou R$ 39,90 (e-book)
Sinopse:
"Um romance poderoso e áspero sobre uma família, um apartamento caótico e as dolorosas descobertas da adolescência.
Faltava muita coisa no apartamento 402. Mas sobravam muitas outras: caixas de papelão, bandejas de isopor, cacarecos, baratas, cupins, muriçocas, poeira, copos sujos. Abigail, Berta e Lúcio formam um trio nada convencional. Duas adolescentes dividem o apartamento com o pai, um homem amoroso, idiossincrático, acumulador, pouco afeito à vida prática, que torce para que a morte venha logo lhe buscar e dá conselhos incomuns às filhas: “É muito bom sentir fome”.
Os tais caquinhos é um romance de formação trágico e comovente, capaz de arrancar risos nervosos. Ao descrever o dia a dia de uma família simbiótica em meio à cordilheira de lixo que só faz crescer, Natércia Pontes desenha um fascinante retrato de três pessoas que buscam conviver com seus sonhos e suas fantasias, suas manias e seus anseios, seus medos e suas revelações."
A Companhia das Letras lançou o Desafio 5 Livros Nacionais em 5 Dias e Os Tais Caquinhos, de Natércia Pontes, autora de Copacabana Dreams (finalista do prêmio Jabuti), foi o que mais me interessou da lista. Minha curiosidade sobre o livro já vinha desde a live de fevereiro que assisti da editora sobre lançamentos para blogueiros e livreiros, portanto, ao ter a possibilidade de ler o e-book cedido pela Companhia das Letras através do sistema Netgalley, iniciei a leitura com boas expectativas.
Estas foram superadas e o livro me agradou muito mais que o imaginado. O clichê aconteceu: lamentei que seja curtinho, pois me apeguei à ele e entrei em "ressaca literária" ao finalizá-lo, tanto que dos três dias que separei para a leitura do desafio (pretendia ler dois ou até mesmo três livros) só consegui ler um dia apenas; nos outros dois dias só pensava em Os Tais Caquinhos e confesso que a obra me destruiu um pouco, num sentido positivo.
A capa também me atraiu à primeira vista. A imagem é exótica, estranha, e ao mesmo tempo cotidiana e simples. É de Ale Kalko e utiliza a obra de 2013, Falconeira, de Julia Debasse, uma acrílica sobre linho do acervo Galerias Portas Vilaseca, reprodução de Rafael Salim. Creio que a imagem combina muito, pois algumas passagens envolvendo insetos, principalmente um gafanhoto, são marcantes.
"Sobramos nós: eu, Berta e Lúcio e as baratas. Mas Lúcio gostava da rua e nela ficava até o galo cantar e o sol subir. Quando voltava, rodava a chave com cuidado, verificava a mangueira do gás e fechava as janelas de correr deixado uma fresta. O vento assobiava mortiço, miando nossa insônia adolescente. na hora de ir para o colégio, Berta e eu catávamos nossos uniformes embolados no monte de roupa suja que jazia na área de serviço. Os caminhos intricados das rachaduras nos azulejos da área de serviço. Os azulejos amarelos da área de serviço."
Insetos compartilham o apartamento 402, no litoral nordestino, com Lúcio e as filhas adolescentes Abigail e Berta. Eles e uma infinidade de tralhas, objetos, lixo e sujeira amontoados por todos os lados, obstruindo passagens, janelas e até mesmo a porta da varanda. Um acúmulo de coisas que em alguns momentos sufoca, mas em outros, estranhamente ganha vida, fazendo o próprio apartamento, não apenas ser uma extensão de seus moradores ou seus reflexos particulares, mas também parecer uma personagem, tamanha importância na narrativa. Mais que cenário, é o estado de espírito da família, especialmente da protagonista, pois é quem permanece mais tempo no apartamento caótico, insano e esquisito, resultado da confusão psicológica em que o trio está mergulhado.
A família é disfuncional mas unida. Lúcio, depressivo, acumulador e, provavelmente, alcoólatra, é um pai relapso porém amoroso. Mesmo não sendo presente no dia a dia, ele parece ser genuinamente uma boa pessoa, embora viva mais tempo fora, trabalhando (não é revelado com o quê nem de onde vem sua renda) ou sentado no bar ou restaurante, sem se importar como as filhas estão se virando sozinhas. Em casa, ele se pergunta muito frequentemente por que a morte não o leva. Isso, porque a companheira, talvez esposa, o deixou e levou com ela as duas filhas. Não é explicitado se a mulher é mãe ou madrasta de Abigail e Berta, nem se as meninas que foram embora com ela são filhas de Lúcio. Também não se comenta sobre os motivos que fizeram com que a família se rompesse, e fica o questionamento se a desordem e imundície vieram após a ruptura ou se já existiam e/ou se agravaram depois.
"Da rua, os faróis dos carros rareavam vez ou outra iluminando com uma intensidade débil os tubos de papelão ocos, os arquivos mortos, escaninhos vazios, revisteiros empilhados, cupons fiscais de farmácia, tampas de caixas soltas, refis de canetas secos e mais uma variedade de objetos pardos e cobertos de poeira. Brilhando entre eles e sobre o tecido áspero do colchão desforrado se assentavam as impecáveis plantas dos pés. Eu avançava o quarto de pouquinho em pouquinho; tarde da noite as goteiras pingavam mais mansas. A respiração suspensa do apartamento se confundia com a minha. Lúcio dormia em decúbito dorsal, o umbigo inchado revelando-se por entre as casas esgarçadas da camisa de botões. Sempre que me batia uma aflição, e sentia meu coração galopar no peito, ia até o quarto de Lúcio só para aferir a subida e descida de sua enorme barriga branca, a confirmação de que respirava e dormia como alguém vigoroso e com saúde plena e que jamais fosse desaparecer. Inspira, expira, inspira, expira."
Berta, a mais jovem, foge constantemente da vida desestruturada e do apartamento atulhado, frequentando cada vez mais as casas das famílias das amigas, se apegando ao cotidiano regrado e confortável que as famílias normais costumam ter, quando não residem em um lar de acumuladores, colecionistas compulsivos e perdidos no mundo. Já Abigail, a protagonista, embora deseje coisas simples como frutas e vegetais numa geladeira limpa, refeições caseiras quentinhas, roupas cheirando a amaciante e cômodos arejados, limpos e sem lixo e insetos espalhados por todo lado, ela também fantasia com mimos e itens supérfluos que toda adolescente de sua época, a década de 1990, tem ou quer ter. Mas ela é quem mais passa tempo no apartamento e entre sonhos, devaneios e muita reflexão, ela acaba interligada fortemente ao local. É uma situação delicada de amor e ódio, de querer estar longe mas ser apegada.
Se a adolescência já é uma época de dúvidas, descobertas e experiências intensas, Abigail, sem orientação, regras ou um porto seguro, mergulha em relacionamentos frágeis com vários rapazes diferentes e experimenta drogas e bebidas, e submersa em criatividade, sentimentos e desejos, ela escreve seus momentos e algumas lembranças em um caderno quase tão estranho e confuso como seu lar.
Por isso, os capítulos são curtos e um pouco desordenados, apesar de seguirem uma ordem cronológica principal. Pois o passado recente poder vir logo após o presente e, ainda assim, fazer sentido, assim como tudo se mistura a flashbacks da infância, quando Abigail e Berta eram mais unidas ou tinham a presença das duas irmãs e de uma figura feminina.
"Berta e eu andávamos de saco cheio uma da outra. Ao longo dos anos, ardia uma dinamite improvisada à base de fúria, hormônios, umidade, calor, desamparo logístico, sujeira, incompreensão sobre a vida, pó sobre os talheres, perna solta de barata incrustada no sabonete ressecado. Apesar de tudo havia os nossos sonhos bons, tais como: desenhar incessantemente esboços de quartos aconchegantes e fingir que se vive no hábitat ideal para uma adolescente limpa, bem-cuidada, respeitada, digna de receber edredons macios, abajures de luz tênue, cômodas higienizadas, e, claro, com todas as gavetas funcionando perfeitamente, roupas bonitas, cortinas diáfanas, tapetes felpudos, cortiça em formato de coração pregada na parede e abarrotada de fotos de festas de aniversário memoráveis;"
A narrativa em primeira pessoa é viciante, crua e intensa, e imediatamente me conquistou. Com a ideia de "ler apenas um pouquinho só para ver se gosto", me agarrei ao livro e não conseguia parar, portanto, em apenas uma tarde mergulhei no mundo de Abigail, em uma mistura de curiosidade, empatia e desespero pela protagonista. Algumas passagens podem ser um pouco fortes para determinadas pessoas, pois o texto além de um pouco mordaz é sensorial.
Além das reflexões psicológicas, a obra é tão pura e sincera, mas também complexa e criativa em suas descrições, que causam diversas sensações, não somente visuais. Inclui aromas e texturas, ao menos foi minha experiência. Literalmente minha imaginação foi muito além de tentar criar cenários, cores ou aparências de personagens. Me senti muito conectada à protagonista, como se estivesse no apartamento soterrado de tralhas, solidão, sonhos e sentimentos.
Gostei tanto do livro que com certeza vou adquirir meu exemplar físico para ter na estante. Recomendo a todos que buscam uma leitura intensa, psicológica, visceral e sensorial, com uma escrita sincera e fértil e uma protagonista adolescente humana e realista. Com certeza é um livro triste que fará muitos saírem do lugar-comum e se voltarem a um cantinho secreto de sua mente e, quem sabe, revisitar seus próprios cacarecos psicológicos.
Lá na Amazon é possível ler o trecho inicial do livro. Clique aqui e experimente.
Natércia Pontes nasceu em 1980, em Fortaleza, e mora em São Paulo. É autora de Copacabana Dreams (Cosac Naify, 2012), finalista do prêmio Jabuti.
Amei a resenha. Esse livro parece tão bom e trazer tantos sentimentos. Já vou marcar para ler depois.
ResponderExcluirbeijos
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